VI DOMINGO DO TEMPO COMUM A
         

                                                                            
A RADICALIDADE DO SER CRISTÃO
Com este título escolhido por mim, gostaria de publicar um excelente estudo bíblico de autoria do

Pe. Fidel Oñoro, cjm
Centro Bíblico del CELAM
cujo título original é COMO ENFRENTAR A VIOLÊNCIA 


Introdução
Continuamos ouvindo o Mestre no Sermão da Montanha. Seguimos o tema do discipulado, o qual tanto insiste o Documento de Aparecida.
Através das sequência dos evangelhos do domingo vamos vendo como o ensinamento de Jesus pouco a pouco explana:
·     Em que consiste a vida nova do Reino proclamada nas bem aventuranças;
·     Como a semente do Reino cresce na pessoa e vai se fazendo sal e luz no cotidiano de nossa vida;
A “justiça do Reino”, que gera vida e fraternidade, é a que da pleno sentido à “Lei e os Profetas”. Jesus não veio dar cumprimento à “Lei e os Profetas” exigindo mais rigor, mas remontando-se até a vontade do legislador, precisamente o seu coração. De fato, a Lei não faz, senão, assinalar que é que o Pai quer que façamos. Ela não tem em si mesma a força interna para fazer-nos realizar sua vontade.
Portanto, no Evangelho de hoje fica claro, de uma vez por todas, que o fundamental é ser “filhos no Filho”, quer dizer, que o amor cristão não é mais que a maneira de ser do Pai Deus refletido em seus filhos, assim como nos revelou em seu Filho Jesus.
Em poucas palavras: “Sejam filhos de vosso Pai do céu… Sejam perfeitos como é perfeito vosso Pai do céu” (Mt 5,45.48). O ponto básico é este: que esta “filiação” e esta “perfeição” se deixam conhecer no modo como enfrentamos a violência.
1.  O contexto
A passagem se situa dentro do Sermão da Montanha, o qual abarca três longos capítulos do Evangelho de Mateus (Mt 5 – 7), mais precisamente, dentro da seção na qual se descreve a Nova Lei que inspira todo discípulo de Jesus: a “Justiça maior do Reino” (Mt 5,20-48).
Nesta seção, como temos visto, em seis ocasiões Jesus retoma a Lei (“Haveis ouvido que se disse…”) para mostrar que nele se dá a justiça nova e superior, quer dizer, a plenitude da Lei (“Porém eu vos digo…”). Por este elemento formal, esta seção é conhecida como das “antíteses”.
2.  O texto
O texto de hoje continua o do domingo passado, como já vimos. Estamos ante a quinta e a sexta antítese. Estas, como indicamos acima, expõem o novo do estilo de vida de um discípulo de Jesus no âmbito relacional conflitivo, particularmente quando o outro é o ofendido.
A quinta antítese expõe a reação que se espera de um discípulo ante situações de agressão pontuais, enquanto a sexta expõe a reação ante situações permanentes (um “inimigo”). Para aproveitar mais nossa leitura de Mt 5,38-48, voltemos a situar­-nos no âmbito discipular que vimos domingo passado.
3.  Aprofundando o texto
De novo na “escola de valores do Reino”
Como já vimos, o primeiro âmbito de vida no qual se insere a “justiça superior”, que provém do Reino, o das relações com os demais. Para isso, Jesus mostrou como se exercem as bem aventuranças, isto é, como elas nos dão critérios para reagir frente a dois tipos de situações:
·     Quando a iniciativa da relação depende da pessoa (cf. Mt 5,21-37 que lemos no domingo passado);
·     Quando a iniciativa a tem a outra pessoa (Mt 5,38-48 que lemos hoje).
No primeiro tipo de situações (Mt 5,21-37), foi posto de relevo três valores do Reino:
·    a reconciliação;
·    a fidelidade; 
·    a veracidade.
Agora vemos, em Mt 5,38-48, o outro lado da moeda: quando o assunto não depende da pessoa, quer dizer, que a pessoa tem boas intenções para restabelecer a justiça (reconciliação, fraternidade, paz, etc.) porém a outra pessoa não.
É aqui onde o conflito aparece mais crítico: Que fazer frente ao agressor? Qual deve ser a atitude de um seguidor de Jesus, e portanto filho no Filho Deus, ante alguém que se tornou seu inimigo? Com esta chave aprofundemos no texto.
3.1.   A reação do discípulo ante as agressões
(a)  A situação
O primeiro impulso é o da vingança, o da separação, ou o devolver com a mesma moeda a ofensa recebida. Já no Antigo Testamento se havia chegado a admitir esta possibilidade: “Foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’” (5,38; ver Ex 21,24); a qual chamamos de “a lei de talião”.
Em sua época esta Lei foi um grande avanço na história da civilização, já que sua finalidade era evitar a justiça pela próprias mãos; já se sabe que quando isto sucedia as consequências eram funestas: a turba inflamada terminava dando morte ao delinquente.
Por isso a norma estabelecia que, diante de um árbitro (o juiz do povo) se fazia justiça: se no litígio um murro havia quebrado um dente, agora o agredido tinha direito a fazer o mesmo (um só dente e não dois). Então os dois ficavam em paz.
(b)  O valor do Reino que deve ser exercido
Para Jesus, quem interpreta o querer de Deus no modo como devemos regular as relações, a vingança não pertence ao proceder característico do Reino de Deus.
Não é assim que se faz justiça. É preciso dar um novo passo à frente. A verdadeira justiça não está nos empates, mas na paradoxal vitória do derrotado: “Não oponhais resistência ao malvado” (5,39ª). Este novo valor que brota da justiça do Reino aponta para ação da violência mediante dois caminhos:
·     não prolonga a violência através do habitual separação (passagem de hoje);
·     o trabalho pela conversão do agressor (passagem de amanhã).
(c) Como aplicar o valor: cinco casos concretos
Em seguida Jesus enumera cinco situações bem conhecidas para os ouvintes do evangelho, nas quais um discípulo se sente agredido em sua integridade física, moral e psicológica. Em cada caso o valor que se exerce sempre é o mesmo.
·     Uma bofetada na face (5,39b)
Neste caso o agredido não devolve o golpe mas expõe sua indefesa oferecendo a outra face (5,39c).
·     Um pleito jurídico para reclamar uma dívida (5,40a)
O agredido se mostra mais generoso que o agressor entregando-o mais do que o reclamado: o manto o qual pertencia ao rol dos elementos de valor de uma pessoa (5,40b).
·     O jugo do exército romano (5,41b)
Os soldados romanos detinham as caravanas e forçavam os viajantes a carregar pedras. Posto que havia abusos, as leis estabeleciam que um romano não podia exigir mais que uma milha neste esforço. A resposta frente a tamanha agressão é, por conta própria, fazer o dobro do pedido, assim fica claro que não se é um escravo mas um homem livre que serve generosamente ao outro (5,41b).
·     Uma pessoa que pede ajuda (5,42ª)
Poderia ser o caso de um mendigo que pede esmola; naquele os níveis de pobreza era muito alto. Não é verdade que uma pessoa que pede ajuda todos os dias pouco a pouco começa a causar aborrecimento? O agredido não perderá a paciência.
·     Um empréstimo (5,42b)
As mudanças forçadas por causa da violência romana (na década de 60 e 70) haviam levado muitas famílias a perder seus bens. Chegavam a outras cidades e recorriam primeiro a seus “irmãos” cristãos. Estes os acolhiam com generosidade nos primeiros dias e lhes fazia empréstimos para que pudessem reorganizar suas vidas. Mas a situação econômica era tal que não havia como pagar e, pior, os mesmos voltavam a pedir mais. Então começavam a negar-lhes (neste caso ver: 6,12;18,23-35; um dos problemas maiores da comunidade de Mateus eram as “dívidas”) e a fraternidade entrava em crise.
Em todos estes casos pode ver-se como o agredido não devolve a ofensa, mas que, pelo contrário, se mostra sempre bondoso. Afronta, portanto, o problema com uma atitude diferente: sob a tensão do agressor e desarma de maneira não violenta a agressão. Não se afronta o mal de maneira passiva, mas com uma atitude que corresponde ao fazer o bem ao inimigo.

3.2.   Quando a situação se torna permanente: que fazer ante os inimigos
(a)  A situação
Quando, no texto, é citado o antigo mandato de “odiar o inimigo” e restringir as relações aos que são considerados “próximo”, em princípio se pensa no irmão israelita. Em seguida, aplica-se aos inimigos da comunidade de Mateus que está vivendo na esfera do Reino. Recordemos que na conclusão das bem aventuranças se pôs de relevo que as comunidades estavam sendo perseguidas (ver 5,10-12).
Sobre este horizonte se delineia a última lição, segundo a qual o “ódio ao inimigo” (5,43). Pode ser válido para quem conhece a “Lei” (Lv 19,18), porém ainda não fez a experiência de Jesus, porém já não vale para quem vive no âmbito do Reino.
(b)  O Coração do Pai como modelo que inspira a vida do discípulo
O homem velho era acostumado a por de um lado os amigos e de outro os inimigos; com os primeiros trata e com os outros não. Porém, resulta que Deus Pai não é assim: Ele “faz sair seu sol sobre maus e bons, e chover sobre justos e injustos” (5,45). Quer dizer, que no coração de Deus Pai de Jesus cabem todos.
(c)  Aplicação: um amor sem limites e com capacidade de regenerar
A menção explícita do “sol” e da “chuva” é uma referência às bençãos que Deus derrama sobre os seus: com elas Deus mantém e faz prosperar o que tem criado. Que Deus ilumine e conceda prosperidade a uma pessoa “” ou “injusta”, indica que – assim como tampouco o fazem o sol e a chuva – o amor do Pai não se limita àqueles que o amam, mas que oferece seu amor gratuitamente e sem distinção até mesmo a guem não o merece.
Da mesma forma se comporta o discípulo com quem o persegue e o causa dano, a ele e à comunidade. Por isso Jesus muda a frase “odiar o inimigo” por “amar o inimigo” (5,44a). A maneira concreta de amá-lo é incluí­-lo em sua própria vivência de Deus Pai do Reino: “rogai pelos que o perseguem” (5,44b). Então o Deus do Reino o transformará com suas bênçãos. Realiza-se, assim, o segundo passo na maneira de afrontar uma inimizade: transformar o inimigo com o poder regenerador do Reino.
A atitude fundamental de um discípulo de Jesus é o amor que só deseja o bem, faz o bem, e, desde ai, faz o outro bom. Como também disse Paulo: “Não te deixes vencer pelo mal; antes, vence o mal com o bem” (Rm 12,21). Assim se corta o mal pela raiz.
Uma pessoa que age assim evidentemente é diferente de outra que não “conhece” o que é viver sob a graça da filiação divina. Exemplos claros são o publicano – que vive em seu pecado – e o gentio – que adora a outros deuses(ver 5,46-47); eles amam (nada mais) aos que os amam e os saúdam (não mais que) aos de seu estrito círculo de amizades. Por sua parte, o discípulo é claramente diferente porque o motivo fundamental que inspira seu agir é o amor perfeito, primeiro e criador do Pai celestial.
3.3.   O critério fundamental: a maneira de ser do Pai celestial
A última lição que Jesus dá nesta escola de valores que ensina a conviver ao estilo do Reino de Deus é, precisamente, que o que dá plenitude à Lei é a identificação com os comportamentos e atitudes do Pai celestial: uma vida de Filhos de Deus: “Vós, pois, sede perfeitos como é perfeito vosso Pai celestial” (5,48). Aqui já não se fala de um valor específico, mas da fonte de todos os valores: a perfeição do Pai. Se bem que Deus Pai é perfeito em tudo o que pudéssemos pensar, aqui se está aludindo àquilo que mais o caracteriza com relação a nós: o amor (ver Lc 6,39, aparece explicitamente o termo “misericórdia”). 
As bemaventuranças levam a viver segundo o Coração do Pai. As “boas obras” que refletem a luz da vida nova dos discípulos são aquelas que fazem notar uma vida de “filhos” que levam em si a marca a personalidade do Pai: “para que vendo…glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (5,16). Os bons filhos honram seu nome. Portanto, o critério último de ação não é a “Lei” escrita a maneira de ser do Pai que se refletiu nitidamente na práxis de misericórdia de Jesus de Nazaré.
4.  Aprofundemos como os nossos pais na fé
Santo Inácio de Antioquia (? - cerca 110), bispo e mártir

“Amai os vossos inimigos, e rezai pelos que vos perseguem”. “Orai sem cessar” (1 Ts 5,17) pelos outros homens. Pode-se esperar seu arrependimento, e que volte para Deus. Mas que ao menos vosso exemplo lhe indique o caminho. À sua cólera, oponde vossa doçura; à sua arrogância, vossa humildade;
às suas blasfêmias, vossas orações; a seus erros, a firmeza da vossa fé; à sua violência, vossa serenidade, sem procurar em nada fazer como eles. Mostremos-lhes, pela nossa bondade, que somos seus irmãos. Procuremos “imitar o Senhor” (1 Ts 1,6). Quem sofreu a injustiça mais do que ele? Quem foi despojado e rejeitado? Que não se encontre entre vós a erva do diabo (Mt 13,25). Numa pureza e temperança perfeitas da carne e do espírito, permaneçamos em Jesus Cristo. Eis chegados os últimos tempos... É apenas em Cristo que entramos na verdadeira vida. Fora dele, nada de valioso!... Nada ultrapassa a paz; ela triunfa de todos os assaltos que nos desferem os nossos inimigos, quer sejam celestes ou terrestres... Hoje, já não é suficien te professar a fé; é preciso mostrarmos até ao fim de que força ela nos enche.